Por Marco Faustino
Ao longo dessa segunda semana do mês de outubro tentei focar em assuntos, que não costumam ser divulgados pela mídia brasileira ou internacional. Na última quarta-feira (11), véspera dos 300 anos de Nossa Senhora Aparecida, comentei sobre as crenças dos seres humanos e o impacto das mesmas nos próprios seres humanos e na natureza. Inicialmente, falamos sobre uma antiga tradição de curar através das palavras, muitas vezes por meio de sussurros, que é mantida na Bielorrússia. A tradição é secreta, protegida, e não é transmitida para estrangeiros. O conhecimento sagrado vem sendo transmitido de geração em geração, de avôs(ós) para netos(as), e tudo que é falado é escolhido com muito cuidado. Aparentemente, as palavras certas têm o poder de curar pessoas e animais, proteger as famílias de eventuais problemas financeiros, do mau tempo, e até mesmo de doenças rogadas por bruxas e feiticeiros. Contudo, ano após ano, o número de pessoas que possuem esse conhecimento vem diminuindo, fazendo com que uma tradição milenar corra o risco de desaparecer para sempre. Posteriormente, falamos que em muitos países do mundo a crença de que animais possuem poderes mágicos, tanto para bem, quanto o mal, vem fazendo com que inúmeras espécies corram risco de extinção, ou seja, também de desaparecerem para sempre da face da Terra. Vale muito a pena conferir aquela matéria (leia mais: O Poder da Crença! O Segredo Milenar de Curar Através das Palavras e a Matança de Animais Devido as Crenças ao Redor do Mundo!).
Agora, nessa sexta-feira, que é feriado prolongado para muitas pessoas em nosso país, resolvi trazer ao conhecimento de vocês a arte singular, ainda que um pouco macabra, de uma senhora chamada Frances Glessner Lee, que faleceu em 1962, mas que entrou para a história mundial ao simplesmente recriar cenas de crimes, nos mínimos detalhes, para treinar investigadores policiais de departamentos de homicídios. O objetivo era que eles pudessem "prender o culpado, soltar o inocente, e encontrar a verdade em poucas palavras." Esses dioramas, que na verdade representam crimes que realmente aconteceram, porém no tamanho de casas de bonecas (sendo que muitos realmente parecem mesmo casas de bonecas), foram criados na primeira metade do século XX, e ainda são utilizados no treinamento forense até hoje. Aliás, eles foram fundamentais para ajudar a revolucionar o campo emergente da investigação de homicídios. Praticamente todo o material criado por ela estará em exposição na Galeria Renwick, na capital norte-americana de Washington, entre os dias 20 de outubro de 2017 e 28 de janeiro de 2018. Aliás, é justamente um pouco da história de Frances Glessner Lee e seus incríveis dioramas, que vocês conferem a partir de agora. Vamos saber mais sobre esse assunto?
A Incrível História de Frances Glessner Lee e Seu Inestimável Legado para a Investigação Forense
A cozinha está bem abastecida, repleta de mantimentos e eletrodomésticos. Há um fogão, uma geladeira cheia de comida, uma mesa com um rolo de macarrão e uma tigela, além de uma pia. O calendário na parede, contendo a imagem de uma caravela, nos diz que estamos em abril de 1944. Porém, há um "pequeno" detalhe: cada um dos itens está em miniatura, e foi feito à mão. Além disso, há uma bonequinha deitada no chão, aparentemente morta, cuja causa da morte é desconhecida.
Esse é apenas um dos exemplos da "Nutshell Studies of Unexplained Death", uma série de dioramas em escala 1/12, baseados em casos de investigação criminal da vida real. Eles foram usados, e continuam sendo estudados até hoje, para treinar investigadores na arte de coletar evidências, documentar a cena do crime de forma meticulosa e observar atentamente cada detalhe. Aliás, os dioramas foram criados por uma das figuras mais improváveis e influentes em termos de análise da cena de um crime: uma mulher chamada Frances Glessner Lee.
Diorama "The Kitchen" ("A Cozinha", em português) de Frances Glessner Lee |
A cozinha está bem abastecida, repleta de mantimentos e eletrodomésticos. Há um fogão, uma geladeira cheia de comida, uma mesa com um rolo de macarrão e uma tigela, além de uma pia |
O calendário na parede, contendo a imagem de uma caravela, nos diz que estamos em abril de 1944. |
Porém, há um "pequeno" detalhe: cada um dos itens está em miniatura, feito à mão, é uma bonequinha está deitada no chão, aparentemente morta, e a causa é desconhecida. |
Assim sendo, sem muitas opções, ela acabou se casando com um advogado e teve três filhos. Eles se divorciaram em 1914, e foi um pouco mais tarde, que Glessner Lee acabou se afastando radicalmente das expectativas geradas em torno dela.
Ao escrever sobre seus dioramas para o "The Journal of Criminal Law, Criminology e Police Science", em 1952, Glessner Lee enfatizou a importância de manter uma mente aberta: "... muitas vezes o investigador tem um 'pressentimento', e acaba procurando e encontrando apenas a evidência para apoiá-lo, desconsiderando qualquer outra evidência que possa estar presente. Esta atitude seria calamitosa ao investigar um caso real."
Ela ajudou a fundar o Departamento de Medicina Legal de Harvard, em 1931, chegou a doar uma coleção de livros e manuscritos, em 1934, que acabariam se tornando a Biblioteca Magrath de Medicina Legal, e realizou uma contribuição financeira substancial na ordem de US$ 250.000 ao departamento que ajudou a fundar, em 1936 (vale ressaltar nesse ponto que o valor doado seria atualmente superior a US$ 4,3 milhões).
Ela chegou a realizar jantares para pesquisadores e os escutou falar sobre os casos investigados. E, assim como um investigador forense faria, ela absorveu os detalhes e identificou um culpado em muitos dos casos: a falta de ferramentas de treinamento.
Murder She Wrote', queria fazer mais para ajudar a treinar os investigadores. Ela queria criar uma nova ferramenta para eles", escreveu a arquiteta e educadora Laura J. Miller, em seu excelente ensaio chamado "Denatured Domesticity: An account of femininity and physiognomy in the interiors of Frances Glessner Lee".
Contando com uma certa experiência em criar miniaturas, Glessner Lee começou a trabalhar em seu primeiro diorama. Ela escreveu, sem qualquer exagero: "nenhum esforço foi poupado para tornar cada detalhe perfeito e completo." Uma foto minúscula de casamento é exibida em cima de uma cômoda. Roupas íntimas aparecem estendidas em um varal através da janela. Pequenos jornais têm manchetes legíveis em diferentes tamanhos e fontes, assim como um jornal de verdade.
Ainda segundo Laura J. Miller, "o investigador forense assume a tediosa tarefa de classificar através dos detritos de uma vida doméstica arruinada... o investigador reivindica uma identidade específica e uma agenda: interrogar um espaço e seus objetos através de meticulosas análises visuais."
Os dioramas de cenas de crimes revolucionaram a investigação forense, e se tornaram obras extremamente respeitadas no mundo acadêmico |
Diorama de Glassner Lee conhecido como "Woodman's Shack" ("Cabana do Lenhador, em português) |
Mais detalhes do diorama conhecido como "Woodman's Shack" |
Mais alguns outros detalhes do diorama conhecido como "Woodman's Shack" |
Nem todos representavam um caso envolvendo homicídio e, particularmente, um caso bem complicado envolvia simplesmente uma hemorragia cerebral. Contudo, Glessner Lee era inflexível ao dizer, que os dioramas não eram simplesmente enigmas para serem resolvidos.
Glessner Lee criou cerca de dois dioramas por ano, com a ajuda de um carpinteiro, começando no início da década de 1940. Na foto acima temos Alton Mosher, o carpinteiro de Frances Glesser Lee |
Frances Glessner Lee também fazia questão de mostrar com riqueza de detalhes o estado de decomposição do corpo das vítimas |
Nenhum detalhe da cena de um crime escapava do olhar minucioso de Frances Glessner Lee |
Foto do diorama conhecido como "Dark Bathroom" ("Banheiro Escuro", em português) |
"Felizmente, com os dioramas, você não pode mexer nas coisas as redor e bagunçar tudo como você faria em uma cena real ou encenada, então os dioramas acabam ensinando habilidades em termos de documentação, pensamento crítico, solução de problemas e observação", disse Kimberlee Moran. Aliás, apesar de suas intenções científicas e motivação em termos de justiça criminal, não há dúvida de que Glessner Lee também mostrou um incrível talento criativo.
Foto do diorama "Living Room" ("Sala de Estar", em português) de Glessner Lee |
Detalhe de uma parte do diorama "Living Room") |
Notem o nível de precisão, acabamento e detalhes, que estão em cada diorama de Glessner Lee. No caso do diorama "Living Room" percebam a diferença entre as fontes e tamanhos das letras. |
Mais uma foto mostrando a riqueza de detalhes do diorama "Living Room" |
Foto mostrando a visão aproximada do corpo da vítima no diorama "Living Room" |
Nora Atkinson também apontou que, embora os dioramas fossem baseados em casos reais, Glessner Lee tomou todas as outras decisões pertinentes aos mesmos, incluindo onde objetos e outras peças do cenário deveriam aparecer, e que não fossem relacionadas as evidências específicas do crime.
"Devido sua atenção a esses detalhes e seleção de casos, seu trabalho brilha de uma maneira que poderia ser negligenciada se estes fossem examinados puramente de uma perspectiva científica. Há uma grande metáfora, que pode ser intuitiva nos dioramas, se tornando uma grande biografia", completou.
Foto do diorama "Striped Bedroom" ("Quarto listrado", em português) de Glessner Lee |
Dos 19 dioramas ainda existentes (acredita-se que 20 foram construídos ao custo médio de US$ 6.000 cada um), 11 das vítimas são mulheres. |
Glessner Lee evitou comparecer as convenções das mulheres de sua classe e de sua idade. Ela começou a criar os dioramas, quando tinha por volta de 60 anos (um artigo de revista da década de 1940 sobre ela, tinha a seguinte manchete "Vovó: Detetive aos Sessenta e Nove"). No entanto, graças a sua inventividade e criatividade, além do seu apoio financeiro a essa área, ela alterou os métodos de treinamento dos investigadores forenses até chegar ao ponto, que ela foi chamada de "Mãe da Investigação Forense". Em 1943, ela se tornou a primeira mulher nos Estados Unidos a ser nomeada como capitã de polícia.
Frances Glessner Lee entrou em um campo, que era dominado apenas por homens |
Em 1943, ela se tornou a primeira mulher nos Estados Unidos a ser nomeada como capitã da polícia |
"Em razão da bagunça ao redor da sala, a evidência sugere que ela pode ter ficado desanimada devido a solidão. As antigas cartas espalhadas na sala e os objetos empoeirados e antiquados preenchem o espaço, uma espécie de metáfora sugerindo que ela mesma se sentiu antiquada e sem utilidade para alguém", disse Nora Atkinson.
Visão lateral do diorama de Frances Glessner Lee chamado "Three Room Dwelling" ("Residência de Três Quartos", em português) |
Visão superior do diorama "Three Room Dwelling" onde um casal aparece morto |
No quarto ao lado do diorama "Three Room Dwelling"é possível encontrar um bebê, que foi morto com um tiro na cabeça em seu próprio berço |
Visão geral do quarto do bebê no diorama "Three Room Dwelling" |
Diorama de Frances Glessner Lee chamado de "Attic" ("O Sótão") |
Detalhe dos pés da senhora que aparece enforcada no diorama "O Sótão" |
Detalhe das cartas encontradas espalhadas no chão no diorama "O Sótão" |
Frances Glessner Lee nos deixou em 27 de janeiro de 1962, aos 83 anos. Em seu obituário publicado no jornal "The New York Times", um dia após a sua morte, foi citada uma frase dela, proferida durante uma entrevista para Harvester Company onde ela disse: "Felizmente, nasci com uma colher de prata na minha boca. Isso me deu tempo e dinheiro para seguir meu hobby em termos de detecção científica de crimes".
Detalhe do local onde os dioramas de Frances Glessner Lee ficam expostos no Escritório do Médico Legista de Maryland |
Apesar de não estar lá para conferir tudo isso de perto, é possível notar cada detalhe, incrivelmente planejado, em cada foto. Caso viaje para a capital norte-americana nessas férias, e goste desse assunto, não deixe de conferir essa exposição!
Como se não bastasse toda essa história de vida e contribuição para a investigação forense de cenas de crime, Frances Glassner Lee acabou influenciando outros artistas a criarem trabalhos semelhantes. É exatamente isso que iremos conferir, de forma bem rápida, a seguir!
A Influência de Frances Glessner Lee em Outros Artistas ao Redor do Mundo
Conforme dissemos anteriormente, a influência de Glessner Lee permanece viva fora do mundo do forense. Artistas como Ilona Gaynor, Abigail Goldman e Randy Hage assumiram projetos, que parecem ser inspirados em seus dioramas mortais. Contudo, um dos trabalhos que possui uma referência praticamente direta ao trabalho de Frances Glessner Lee é um espetáculo chamado "Speakeasy Dollhouse".
Quando a artista e autora Cynthia von Buhler ficou sabendo das circunstâncias misteriosas, que cercaram o assassinato de seu avô em 1935, ela foi inspirada por Glessner Lee para criar suas próprias casas de bonecas artesanais para tentar dar sentido a isso. Ela projetou e construiu representações em pequena escala de cenas de sua história familiar: o estabelecimento destinado a venda ilícita de bebidas do avô, um quarto de hospital e um apartamento. Além, é claro, de bonecas feitas à mão para representar todo o seu drama familiar.
A esperança era de que nesses espaços e, literalmente, ao reconstruir os eventos, fosse possível revelar novos aspectos da história. |
Mais uma imagem de uma das casas de bonecas criadas por Cynthia Von Buhler |
Foto referente ao espetáculo "Speakeasy Dollhouse: The Bloody Beginning" |
Foto referente ao espetáculo "The Illuminati Ball" |
Enfim, espero que tenham gostado de saber sobre a história de Frances Glessner Lee, seus dioramas, a importância dos mesmos para a investigação forense, além de conhecer um pouco mais sobre o trabalho de outros artistas que se inspiraram em Glessner Lee, e criaram trabalhos ainda mais espetaculares.
Até a próxima, AssombradOs!
Criação/Tradução/Adaptação: Marco Faustino
Fontes:
http://harvardmagazine.com/2005/09/frances-glessner-lee-html
http://mentalfloss.com/article/504015/frances-glessner-lees-crime-dioramas-are-getting-their-own-smithsonian-exhibition
http://www.atlasobscura.com/articles/frances-glessner-lee-crime-scence-forensics-investigation-dioramas
https://americanart.si.edu/exhibitions/nutshells
https://www.nlm.nih.gov/visibleproofs/galleries/biographies/lee.html
https://www.smithsonianmag.com/arts-culture/murder-miniature-nutshell-studies-unexplained-death-180949943/