Por Marco Faustino
Em 26 de abril do ano passado, o mundo recordou os 30 anos da catástrofe de Chernobyl, na Ucrânia, que é considerado por muitos como o pior acidente em relação a uma usina nuclear da história, cujo número de vítimas continua sendo um mistério. Por volta de 1h23 da madrugada de 26 de abril de 1986, o reator nuclear nº 4 da usina explodiu durante um "teste de segurança". Durante 10 dias, o combustível nuclear ardeu, liberando na atmosfera nuvens tóxicas que contaminaram com radiação até três quartos do território europeu. As nuvens tóxicas atingiram especialmente a Ucrânia e os países vizinhos, Bielorrússia e a Rússia. Moscou tentou esconder o acidente ocorrido na ex-república soviética e as autoridades esperaram até o dia seguinte para evacuar os 48 mil habitantes da localidade de Pripyat, situada a apenas 3 km da usina. O primeiro sinal de alerta, no entanto, foi divulgado pela Suécia, no dia 28 de abril, quando as autoridades detectaram quantidades anormais de radiação, mas o líder soviético Mikhail Gorbachev não falou publicamente sobre o incidente até 14 de maio daquele ano. Depois que as autoridades reconheceram o acidente, cerca de 116 mil pessoas precisaram deixar seus lares situados na zona de exclusão, para a qual até hoje em dia seguem sem poder voltar. Nos anos seguintes, outras 230 mil pessoas tiveram o mesmo destino.
Em quatro anos, 600 mil pessoas, principalmente militares, policiais, bombeiros e funcionários, trabalharam como "liquidadores" para conter o incêndio nuclear e criar uma barreira de concreto para isolar o reator. Os agentes mobilizados chegaram ao local quase sem proteção ou com um equipamento inadequado para enfrentar a nuvem tóxica. Além de conter o incêndio, precisaram limpar as zonas adjacentes e construir um "sarcófago" para conter a radiação. Com o passar dos anos, a estrutura criada imediatamente depois do acidente, de maneira apressada, ameaçava começar a vazar para o ar 200 toneladas de "magma radioativo", razão pela qual a comunidade internacional se comprometeu a construir uma nova camada de concreto mais segura. Assim sendo, a Ucrânia inaugurou no dia 29 de novembro do ano passado uma cúpula de metal construída sobre o reator acidentado da central nuclear de Chernobyl para garantir a segurança das instalações durante os próximos 100 anos. A estrutura metálica, em forma de arco, pesa 25 mil toneladas (36 mil quando estiver totalmente equipada) e mede 108 metros de altura por 162 metros de comprimento. De qualquer forma o saldo da tragédia é difícil de esconder debaixo de um domo. Algumas fontes dizem que o então governo soviético admitiu 15 mil mortes, mas, pelas contas de organizações não governamentais foram pelo menos 80 mil vítimas. Além disso, de acordo com números oficiais mais de 2 milhões de ucranianos, incluindo aproximadamente 400 mil crianças, até hoje estariam sofrendo de problemas de saúde relacionados com o acidente.
Agora, será que Moscou teria escondido do mundo um desastre nuclear cerca de quatro vezes pior do que Chernobyl? De acordo com uma recente notícia publicada no site da revista New Scientist, teria havido um desastre nuclear bem pior do que Chernobyl em termos de síndrome aguda de radiação (SRA), mas a cumplicidade de Moscou em relação aos efeitos sobre a saúde das pessoas teria permanecido em segredo até hoje. Vale lembrar que essa síndrome, também conhecida simplesmente por "envenenamento radioativo", é uma série de efeitos para a saúde, que aparecem no prazo de 24 horas após a exposição a grandes quantidades de radiação ionizante. O termo "aguda" refere-se a um problema médico grave que ocorre rapidamente. O início e o tipo dos sintomas dependem da exposição à radiação. Doses relativamente menores resultam em efeitos gastrointestinais, tais como náuseas e vômitos, além de sintomas relacionados à queda dos hemogramas, e predisposição a infecções e hemorragias. Doses relativamente maiores podem resultar em efeitos neurológicos e morte rápida. Enfim, a New Scientist teria tido acesso a um relatório secreto, que foi encontrado nos arquivos do Instituto de Radiologia Médica e Ecologia (IRME), da cidade de Semey, no Cazaquistão, onde mostraria, pela primeira vez, o quanto os cientistas soviéticos sabiam na época, sobre o desastre, e em relação aos impactos a saúde humana e a extensão do encobrimento. Quando, onde, as razões e os efeitos desse desastre é o que vocês vão descobrir nessa matéria. Vamos saber mais sobre esse assunto?
O Prefácio de uma Tragédia
Não adianta comentar sobre a recente divulgação de um relatório secreto de um desastre nuclear sem explicar como foi esse desastre nuclear e o que sabe até hoje sobre o mesmo, principalmente devido aos estudos anteriormente realizados. Minha base será um relatório publicado pelo Instituto Norueguês de Assuntos Internacionais (NUPI), no ano de 2014, que foi especialmente preparado pela a Segunda Conferência Sobre o Impacto Humanitário das Armas Nucleares, que foi realizado na cidade de Nayarit, no México, nos dias 13 e 14 de fevereiro daquele ano. Apesar do relatório ser relativamente simples de ser lido, irei simplificar ainda mais o conteúdo e tentar sintetizá-lo, uma vez que são 40 páginas e ficaria extremamente longo e cansativo para vocês lerem, combinado?
Foto de uma parte do Campo de Testes Nucleares de Semipalatinsk (SNTS), também conhecido como "O Polígono", no Cazaquistão |
Um desses lugares é a região ao redor do Campo de Testes Nucleares de Semipalatinsk (SNTS), também conhecido como "O Polígono", no Cazaquistão, onde a União Soviética conduziu mais de 450 testes nucleares até que o campo fosse desativado em 1991. Entre eles, cerca de 111 testes nucleares foram aqueles considerados atmosféricos, assim como aqueles realizados na superfície da terra.
Estrutura apelidade de "ganso" que servia para medir o impacto das bombas nucleares detonadas no SNTS |
A História de Semipalatinsk
O mundo descobriu sobre o poder horrendo das armas nucleares, quando os Estados Unidos lançaram uma bomba de urânio sobre a cidade japonesa de Hiroshima, em 6 de agosto de 1945, e uma bomba de plutônio sobre Nagasaki cerca de três dias depois. Para Stalin, a conclusão era clara: a nova arma tinha mudado completamente o equilíbrio de poder no mundo, e a União Soviética não tinha escolha senão desenvolver suas próprias armas nucleares. Stalin nomeou Lavrentiy Beria, o ex-chefe impiedoso do NKVD, predecessor da KGB, para supervisionar o projeto da bomba nuclear soviética.
O físico Igor Kurchatov foi escolhido para coordenar o programa e liderar o trabalho dos melhores cientistas da URSS, incluindo Andrey Sakharov, que posteriormente seria considerado um dissidente e ganhador do Prêmio Nobel da Paz. Um montanha de dinheiro foi investida no programa nuclear. Assim sendo, em 1950, cerca de 700.000 pessoas estavam envolvidas no programa, sendo que mais da metade dessas pessoas eram simplesmente prisioneiros.
Foto histórica mostrando Lavrentiy Beria, o ex-chefe impiedoso do NKVD, predecessor da KGB, com a filha de Stalin, Svetlana, no colo. Na foto também aparece o próprio Stalin sentado ao fundo. |
Foi em Semipalatinsk que os esforços soviéticos para criar uma bomba foram coroados com sucesso em 29 de agosto de 1949, com a detonação de uma bomba de plutônio, que era quase uma cópia exata da bomba americana que caiu em Nagasaki, no Japão, cerca de quatro anos antes. Também foi no SNTS que a URSS lançou a primeira bomba atômica a partir de um avião, em 1951, tal como fizeram a primeira detonação termonuclear, em 1953.
Após 1962, todos os testes no SNTS foram conduzidos de forma subterrânea em túneis e poços, e a contaminação ficou limitada ao próprio local de teste, com algumas exceções, é claro. O último teste foi realizado em 19 de outubro de 1989. O saldo total (a quantidade de energia explosiva produzida) dos testes atmosféricos realizados no SNTS é estimado em aproximadamente 6.4 Mt, ou seja, algo equivalente a mais de 400 bombas de Hiroshima. É surreal pensar nesses números.
Algumas das bombas detonadas naquela época dentro do Museu de Armas Atômicas da Rússia |
Fotos da explosão da primeira bomba termonuclear da Rússia no SNTS |
Então, o primeiro secretário do Partido Comunista do Cazaquistão e, após a independência, presidente do Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev, tomou a decisão de encerrar definitivamente as atividades em 1991. Confira um antigo e raro vídeo mostrando algumas dessas detonações, que foi publicado em um canal de terceiros, no YouTube, que mostra a formação do "lago atômico de Chagan":
Confira também esse outro vídeo publicado pela NTI (Nuclear Threat Initiative), sobre o STNS, em sua própria conta, no YouTube, em 2014 (em inglês, mas vale a pena ver):
Uma das razões - pelo menos não para fins secretos - para a escolha inicial de Semipalatinsk como campo de testes nucleares era a vastidão e o quão remoto era o local em relação as estepes do Cazaquistão. Porém, as bombas atômicas não restringem o impacto somente ao local onde são detonadas, e um grande número de pessoas poderia ser potencialmente afetado.
Embora não fosse permitido que as pessoas vivessem dentro do território do SNTS, havia aproximadamente 1 milhão de pessoas morando em um raio de 160 km do local de testes e diversos vilarejos próximos as fronteiras do local do SNTS. As consequências nucleares dos testes se espalharam muito além disso, chegando até a região vizinha de Altai, que hoje pertence a Federação Russa.
O Instituto de Radiologia Médica e Ecologia de Semey estimou, que nos arredores do Campo de Testes Nucleares de Semipalatinsk, entre 500.000 e 1.000.000 de pessoas foram expostas a doses de radiação substanciais entre os anos de 1949 e 1962, ocasião essa quando ocorreu a última detonação acima do solo.
Porém, as bombas atômicas não restringem o impacto somente ao local onde são detonadas, e um grande número de pessoas poderia ser potencialmente afetado |
Como se isso não bastasse, a contaminação radioativa do próprio local de testes, e de algumas áreas adjacentes continuam apresentando potenciais riscos para a população, embora alguns especialistas afirmem que esses riscos são frequentemente "exagerados". Além do impacto real sobre a saúde e os perigos observáveis no ambiente, a população local continua vivendo na incerteza, uma vez que a radioatividade é invisível e difícil para que pessoas leigas compreendam o perigo que ela representa.
O Impacto Sobre a Saúde da População
Enquanto a explosão e o calor de uma explosão nuclear pode destruir grandes cidades, foi a exposição à radiação proveniente da precipitação nuclear, que foi a maior a ameaça diante dos testes nucleares em Semipalatinsk. Uma estimativa é de que apenas quatro testes (o primeiro teste em 29 de agosto de 1949, outro ocorrido em 24 de setembro de 1951, o primeiro teste termonuclear em 12 de agosto de 1953 e mais um em 24 de agosto de 1956) em Semipalatinsk contribuíram com mais de 95% da dose coletiva em relação a população próxima ao campo de testes.
Parece haver um consenso entre os cientistas de que, em grande parte, "os efeitos sobre a saúde atualmente observados resultam da exposição durante o período de testes, não uma consequência da exposição à radioatividade residual."
As consequências das explosões nucleares em Semipalatinsk foram completamente desastrosas para a população local |
Inicialmente, a União Soviética deu pouca importância aos impactos dos testes nucleares sobre a população local. Apenas uma vez, antes da detonação termonuclear mais poderosa, em agosto de 1953 (de 480 kT, ou seja, cerca de 30 vezes mais potente do que a bomba de Hiroshima), que os moradores de alguns assentamentos próximos foram evacuados de seus vilarejos por um período de quase duas semanas. Mesmo assim, durante todo o período, as pessoas evacuadas permaneceram em áreas com precipitação nuclear do teste realizado. Confira também um matéria sobre o legado deixado por Semipalatinsk realizada pela Euro News. e publicado em seu próprio canal, no YouTube, em abril de 2010 (em inglês, mas vale a pena conferir):
O ímpeto imediato para os estudos sobre o impacto sobre a saúde da população aconteceu posteriormente, em conexão com uma situação de emergência causada por uma detonação nuclear superficial em 16 de março de 1956, cuja nuvem radioativa atingiu a cidade de Ust-Kamenogorsk, a 400 km do epicentro da explosão.
A população da cidade foi exposta a precipitação nuclear com doses de radiação tão altas, que causaram intoxicação por radiação aguda. Em resposta, a liderança soviética estabeleceu uma instituição médica especial e hospitalizou 638 pessoas, que sofriam de intoxicação por radiação. No entanto, não há nenhuma informação sobre o destino dessas pessoas até hoje.
Trajetória da precipitação nuclear das maiores detonações atmosféricas do SNTS |
É difícil estabelecer o tamanho da população afetada pelos testes nucleares no SNTS. Em 1949, a população total das regiões de Semipalatinsk, Pavlodar, Karaganda e Cazaquistão Oriental era de 1,2 milhão de pessoas. Em 1962, esse número havia aumentado para 1,7 milhão, devido à migração causada pelas reformas agrícolas soviéticas no Cazaquistão.
Com base na habitalidade em zonas próximas do SNTS, as autoridades do Cazaquistão reconheceram 1,2 milhão de pessoas como vítimas do SNTS. Uma estimativa frequentemente citada coloca o número de pessoas expostas em cerca de 500.000, mas alguns especialistas do Cazaquistão consideram que o número total de pessoas expostas à radiação é de cerca de 1 milhão. Além disso, também devemos considerar que os moradores da região de Altai, na Federação Russa, também foram afetados.
Com base na habitalidade em zonas próximas do SNTS, as autoridades do Cazaquistão reconheceram 1,2 milhão de pessoas como vítimas do SNTS |
Os dados do IRME são ordenados em três períodos: efeitos agudos e precoces (entre 1 e 10 anos a partir do início da radiação); efeitos precoces a longo prazo (entre 10 e 20 anos a partir do início da radiação); efeitos tardios a longo prazo (20 anos ou mais).
Efeitos Agudos e Precoces da Irradiação (1950 - 1960)
- Uma vez que os estudos dos impactos sobre a saúde ao redor do local dos testes começaram tardiamente, os efeitos agudos não foram investigados imediatamente após os primeiros testes iniciados em 1949. No entanto, é possível traçar alguns indicadores de efeitos agudos precoces, com base em comparações descritivas. Um desses efeitos é a elevada mortalidade infantil. Os números foram 3,4 a 4 vezes mais elevados do que o grupo de controle e da República Socialista Soviética Cazaque (KSSR) como um todo. A maior taxa de mortalidade infantil (entre 100 e 110 casos a cada 1.000 nascimentos) foi relatada a partir dos assentamentos que foram mais expostos à radiação;
- As malformações congênitas em crianças nos grupos expostos foram significativamente mais frequentes do que no grupo controle. Os tipos predominantes incluíram malformações congênitas do sistema nervoso e malformações faciais;
- A principal causa de morte entre as crianças foi a leucemia (câncer do sangue ou medula óssea), que dobrou em comparação com os anos de 1945 a 1948.
Efeitos Precoces a Longo Prazo (1960 - 1985)
- Durante esse período, a mortalidade infantil diminuiu para os níveis encontrados antes dos testes nucleares iniciados em 1949 - um indicativo da relação entre a exposição à radiação, e a alta mortalidade infantil durante o período discutido acima;
- No início da década de 1970, houve um aumento dramático na mortalidade por câncer. As comparações descritivas do IRME mostram taxas de mortalidade por câncer em grupos expostos de até 3,5 vezes maiores do que nos grupos de controle e na KSSR como um todo. Os tipos predominantes incluíram câncer de esôfago, câncer de estômago e câncer do intestino delgado. No fim da década de 1980, o nível de mortalidade por câncer diminuiu significativamente, mas permaneceu maior do que no período anterior ao início dos testes nucleares;
- Estudos citogenéticos realizados entre 1962 e 1975 mostraram que, entre 420 pessoas examinadas (com idades entre 10 e 60 anos, e com doses superiores a 250 mSv), a frequência de aberrações cromossômicas excedeu substancialmente as taxas do grupo de controle;
- As doenças cardiovasculares foram relatadas mais frequentemente em comparação com o grupo de controle e a KSSR como um todo. O nível de doenças cardiovasculares entre 40 - 49 anos na população exposta à radiação, correspondeu ao nível encontrado entre os 50 - 59 anos no grupo controle. De qualquer forma, a associação entre a exposição à radiação e doenças cardiovasculares em Semipalatinsk necessita de mais estudo, e não pode ser considerada como definitiva;
- Entre as mulheres em idade reprodutiva, que foram expostas à radiação na sua infância, foram notificadas mais frequentemente malformações entre os seus filhos (entre 10 a 12 casos por 1.000 nascimentos) do que nos grupos de controle (3 a 5 casos por 1.000 nascimentos). Após 1985, a frequência de malformação entre crianças diminuiu significativamente, muito provavelmente porque a nova geração de mulheres dando à luz não foram expostas à radiação de testes nucleares em sua infância. Desde 1985, a população exposta não diferiu dos grupos de controle nesse indicador.
Efeitos Tardios a Longo Prazo (1985 - 2010)
- Os estudos descritivos do IRME mostram que. no final da década de 1980. houve um segundo aumento acentuado na incidência de câncer entre a população exposta, até três vezes maior que o nível no grupo controle e no Cazaquistão como um todo (entre 420 a 430 casos por 100.000 pessoas em comparação com 140 a 145 casos no grupo de controle);
- Entre as causas de mortalidade por câncer, o câncer de esôfago, câncer de estômago e câncer intestinal diminuiu acentuadamente em relação ao período anterior. Simultaneamente, a proporção de mortes por câncer pulmonar e bronco-pulmonar, assim como câncer de mama aumentou. Essa tendência ainda continua;
- Foi realizado um estudo sobre o envelhecimento precoce ("efeitos gerontológicos") entre 2000 e 2005. De acordo com pesquisadores locais, a idade média para o diagnóstico de câncer de esôfago, câncer de estômago, câncer de mama e câncer de pulmão e bronco-pulmonar foi entre 6 e 9 anos inferior entre as pessoas que foram expostas à radiação e residentes em áreas próximas ao SNTS, do que entre o grupo de controle, ou seja, o diagnóstico era bem mais precoce nas pessoas expostas à radição e residentes em áreas próximas ao SNTS. A expectativa de vida entre o grupo exposto também foi bem inferior do que no grupo de controle;
- Uma importante linha de pesquisa atual é analisar os efeitos sobre a saúde diante do grande número de descendentes de pessoas, que estavam expostas diretamente à radiação, e que continuam morando na região até hoje.
O Impacto Sobre o Meio-Ambiente e a Situação Atual
Após o encerramento da atividades no SNTS, em 1989, e a subsequente separação da União Soviética, o local foi oficialmente dissolvido pelo Ministério da Defesa da Rússia, em dezembro de 1993. O Cazaquistão estava em crise econômica e, segundo os especialistas entrevistados para estudo publicado pelo NUPI, ainda não era capaz de exercer controle sobre o vasto território do local de teste, para garantir a segurança em relação a radiação e restringir o acesso a objetos perigosos.
Foto do rio Chagan dentro do território do antigo campo de testes SNTS |
Em segundo lugar, o que restou do local dos testes nucleares era potencialmente perigoso não somente para os "catadores", e aqueles que compraram os metais radioativos. Havia túneis e poços com resíduos de plutônio, que era suficiente, se totalmente recuperado, para terroristas ou um até mesmo um país construir dezenas de bombas nucleares. Muito trabalho nesse sentido tem sido realizado, particularmente em cooperação com os Estados Unidos e a Rússia.
Cratera gerada por uma das explosões nucleares no SNTS |
O IRSE chegou a mencionar que as fronterias do SNTS foram determinadas pelos generais soviéticos na década de 1940, e não refletem as realidade atuais. Grande parte do território que pertence formalmente ao local de testes pode ser considerada "aceitável para utilização normal", porém algumas regiões localizadas fora da região de testes precisavam ser fechadas ao público e cuidadosamente monitoradas. De qualquer forma, havia planos para ajustar as fronteiras dos locais de teste para corresponder à situação real de radiação. As demais áreas devem ser protegidas e monitoradas, indefinidamente.
Curiosamente, animais conseguiram sobreviver aos efeitos do SNTS, porém o custo, sem dúvida alguma, foi muito alto |
Uma fazenda experimental de gado funciona dentro do território do antigo campo de testes |
Existiam inúmeras áreas onde o acesso para animais de pasto e população precisavam ser restritos. Tratavam-se das zonas epicentrais dos campos de testes estudados, vestígios de precipitação radioativa e emissões resultantes de acidentes, áreas locais de contaminação por agentes de guerra radiológica (bombas "sujas" contendo misturas radioativas), a área do chamado "Lago Atômico", o rio Shagan, entre outras localidadades. Para vocês terem uma ideia, as pessoas que visitam o local frequentemente expressam surpresa pela falta de sinais de alerta e barreiras físicas aos locais altamente contaminados.
As Experiências Vivenciadas pela População Local: As Percepções dos Impactos dos Testes Nucleares
Uma vez que médicos tentam estabelecer os impactos sobre a saúde devido aos testes nucleares realizados no SNTS, e os cientistas nucleares tentam mapear o estado atual de contaminação radiológica, e tentam prever futuros desdobramentos, existe um outro aspecto importante das consequências humanitárias dos testes nucleares, que tende a ser ignorado: a própria experiência das pessoas, assim como a percepção sobre como aquilo afeta suas vidas e as vidas de seus entes queridos que foram afetados pelo SNTS. O bem-estar psicológico é uma parte importante da saúde de uma pessoa, e os sentimentos por ser uma vítima - independentemente da causa desse sentimento - são prejudiciais à qualidade de vida e à saúde.
Os resultados podem ser resumidos da seguinte forma:
- Cerca de 93% dos entrevistados "de alguma forma experimentaram diretamente os testes nucleares", também em "vilarejos distantes a 200 km do hipocentro", algo que os pesquisadores japoneses atribuíram ao poder das bombas detonadas no SNTS;
- Cerca de 90% dos entrevistados relataram ter visto um clarão, 70% sentiram a onda de choque produzida por uma bomba, 18% sentiram calor, 28% viram uma nuvem em formato de cogumelo, 16% mencionaram um "rugido ensurdecedor" e 7% se referiram a animais que perderam o pelo, uma típica lesão sub-aguda de radiação.
Todos os moradores que estavam vivos durante os testes possuem memórias vívidas dos militares que apareceram nos vilarejos, desembarcando de helicóptero, na véspera de um teste para avisá-los de "exercícios militares" nas redondezas... As explosões nunca foram descritas como "testes nucleares" ou "bombas atômicas"... Muitos moradores disseram que, quando eram jovens, eles achavam que os testes eram divertidos e empolgantes, e eles raramente ouviam as instruções, tal como se deitar no chão, e evitar de olhar para as nuvens brilhantes no céu (Werner e Purvis-Roberts, 2005)É importante notar que, quando testemunhas de testes nucleares contaram sobre suas experiências, eles estavam predominantemente preocupados com o impacto contínuo sobre seu corpo e sua saúde. Pesquisadores japoneses relataram, que 33% dos moradores sentiam que tinham uma saúde ruim ou muito ruim, e, significativamente, que 70% dos moradores reconheceram fortemente uma relação causal entre suas más condições de saúde e os testes nucleares. Os testemunhos de moradores locais contêm relatos de partir o coração em relação as vidas arruindas devido aos testes nucleares.
A questão que permanece é: Como pessoas humildes podem lutar contra algo que ninguém vê? Muitos moradores atribuem qualquer problema de saúde que tenham ao SNTS, mesmo que muitos médicos e cientistas digam que não tem nenhuma relação com os testes nucleares. Ainda que não tenha, o efeito pisicológico dos testes nucleares permanece vivo e ativo mesmo após décadas.
O Sistema Estatal de Apoio as Vítimas dos Testes Nucleares
O reconhecimento das consequências humanitárias dos testes nucleares em Semipalatinsk também foi institucionalizado: existe um sistema estatal para o reconhecimento da vitimização, e compensações e benefícios para aqueles definidos como afetados. Introduzido em 1992, esse esquema de apoio estatal exigia critérios elaborados para definir quem seria e quem não se qualificaria como uma "vítima" de testes nucleares.
"Assim como em casos semelhantes de desastres ambientais, houve discussões se as vítimas deveriam ser limitadas àquelas que desenvolveram certas condições médicas associadas à exposição à radiação ou se as vítimas deveriam ser definidas por residência permanente próxima do local dos testes, onde os níveis de exposição eram significativos. O governo do Cazaquistão decidiu seguir essa essa última opção e dividiu as "vítimas" em quatro subcategorias: risco mínimo; risco acima do mínimo; risco máximo; e risco extraordinário (Werner e Purvis-Roberts, 2007, página 474)"Além dessas quatro categorias de área, alguns benefícios foram admitidos aos moradores do chamado "território de status socioeconômico privilegiado especial", definido por lei como uma área adjacente à área mínima de risco com uma dose baixa de radiação (medido ao longo de todo o período de testes nucleares), algo que, por outro lado, adicionava sérias tensões psicoemocionais negativas as pessoas que viviam nessas áreas. Até 1995, a residência era a única base para a compensação. Desde 1995, no entanto, a indenização pode ser concedida através de uma compensação adicional às pessoas com base em suas condições individuais de saúde.
Os principais mecanismos oficiais para lidar com as consequências do SNTS baseiam-se na lei n.º 1787-Х11. A lei prevê as principais medidas destinadas a proporcionar benefícios sociais e proteção às pessoas que sofreram e ainda sofrem em decorrência das atividades do SNTS. Os artigos 10 e 11 definem as condições das pessoas submetidas aos testes nucleares e estabelecem critérios para a emissão de "passaportes radiológicos", indicando a qual das quatro categorias pertencem.
- Compensão financeira em parcela única;
- Uma pensão mais alta (em áreas de risco extraordinário e máximo de radiação);
- Férias adicionais pagas , cuja extensão é definida pela "categoria de risco": área de risco extraordinário de radiação (14 dias); área de risco máximo de radiação (12 dias); área acima do risco mínimo de radiação (10 dias); área de risco mínimo de radiação (7 dias); território de status socioeconômico privilegiado especial (5 dias). A lei de 1992 continua especificando os distritos que pertencem a essas cinco áreas;
- As mulheres que vivem em áreas expostas à radiação têm direito a uma licença de maternidade de até 170 dias (quando o parto não possui maiores complicações) e 184 dias (em caso de partos que exigem maiores cuidados ou múltiplos);
- As crianças menores de 18 anos, que vivem em áreas expostas à radiação, têm direito a tratamento gratuito nos centros de saúde.
A Recente Notícia Divulgada Pelo Site da Revista "New Scientist": A União Soviética Encobriu um Desastre Nuclear Muito Pior do que Chernobyl?
Agora que vocês conhecem um pouco mais sobre o que foi o Campo de Testes Nucleares de Semipalatinsk (SNTS), também conhecido como "O Polígono", chegou o momento de saber o que o site da revista "New Scientist" pode ter trazido ou não de novidade sobre esse assunto. Nós já sabemos que, em março de 1956, as consequências de um teste soviético de armas nucleares em Semipalatinsk, no Cazaquistão, envolveram a cidade industrial de Ust-Kamenogorsk, cuja população da cidade foi exposta a precipitação nuclear com doses de radiação tão altas, que causaram intoxicação por radiação aguda. Em resposta, a liderança soviética estabeleceu uma instituição médica especial e hospitalizou 638 pessoas, que sofreram de intoxicação por radiação.
Aparentemente, no entanto, a revista New Scientist teve acesso a um relatório recém-descoberto sobre uma "expedição científica" realizada por Moscou sobre a contaminação radioativa e todas as enfermidades correlaciondas a radiação nas estepes do Cazaquistão. O relatório de cientistas do Instituto de Biofísica de Moscou foi encontrado nos arquivos do Instituto de Radiologia Médica e Ecologia (IRME), da cidade de Semey, no Cazaquistão.
"Durante muitos anos isso foi mantido em segredo", disse Kazbek Apsalikov, diretor do instituto, que encontrou o relatório e repassou para a "New Scientist".
"Durante muitos anos isso foi mantido em segredo", disse Kazbek Apsalikov (na foto), diretor do instituto, que encontrou o relatório e repassou para a "New Scientist" |
Um mês após a precipitação radioativa atingir Ust-Kamenogorsk, a radioatividade ainda era de 1,6 milirems por hora, cerca de 100 vezes o que o relatório considera como "taxa permitida", e o que é recomendado como "seguro" pela Comissão Internacional de Proteção Radiológica.
No mês seguinte, a expedição passou por divesos vilarejos. "Próximo de Znamenka, as substâncias radioativas que afetaram as pessoas e o meio ambiente caíram repetidamente por anos", diz o relatório. As consequências foram "perigosas para a saúde" e "mais graves e perigosas do que no distrito de Ust-Kamenogorsk".
Capa do relatório recém-descoberto, cujo conteúdo completo ainda não foi divulgado publicamente |
Um dos resultados das expedições científicas foi o estabelecimento de uma instituição médica especial conhecida como um "Dispensário", sob o controle de Moscou, que era encarregada de rastrear a radiação e seus efeitos em relação a saúde da população. Eventualmente, houve um registro de cerca de 100.000 pessoas expostas aos testes nucleares e seus filhos.
"A instalação ficou conhecida por muito tempo como o 'Dispensário Anti-Brucelose nº4'. O nome foi escolhido com o objetivo não chamar a atenção sobre sua real atividade, que foi classificada como sendo sigilosa até 1991", disse Kazbek Apsalikov.
Em alguns locais houve uma temperatura e uma pressão tão alta, que estruturas de concreto simplesmente derreteram |
Memorial erguido em homenagem às vitimas do STNS |
Por outro lado, o relatório também minimizou os perigos, dizendo que diversas mudanças no sistema nervoso das pessoas e do sangue registrado pelos médicos, "não poderiam ter surgido apenas devido ao impacto da radiação ionizante". Em vez disso, o mesmo culpava o saneamento deficiente, uma "dieta pobre" e diversas doenças, como brucelose e tuberculose.
Roman Vakulchuk, pertencente ao Instituto Norueguês de Assuntos Internacionais brindou a nova divulgação do Cazaquistão sobre essa questão. Segundo ele, o relatório é o primeiro registro contemporâneo de pesquisa sobre os efeitos dos testes em populações locais, visto que até 1956, o governo soviético não havia conduzido estudos.
"Grande parte da região não apresenta perigo, mas algumas partes precisam ser protegidas indefinidamente", disse Roman Vakulchuk, acrescentando que ainda há incerteza sobre a extensão da contaminação contínua e os impactos sobre a saúde das pessoas.
Comentários Finais
Enfim, AssombradOs, apesar de termos bons estudos sobre os impactos das detonações de bombas nucleares no Campo de Testes Nucleares de Semipalatinsk (SNTS) continua sendo muito difícil saber a real dimensão do que aconteceu, principalmente durante a época dos testes nucleares considerados atmosféricos. Os documentos oficiais referentes ao SNTS foram praticamente destruídos por aqueles que com certeza sabiam o que estavam fazendo e que, além de não dar a mínima para a população, provavelmente usaram as pessoas como cobaias, para ver de perto o efeito que aquilo poderia causar na região, assim como em suas vidas. Quem sabe o mais recente relatório consiga trazer mais respostas se, e quando, for liberado ao público.
Igualmente é difícil comparar tragédias humanas e dizer se essa ou aquela é quatro, dez ou cem vezes pior do que outra. Vidas foram perdidas, registros de pessoas desapareceram, sequelas permaneceram para sempre na memória e no corpo de pessoas inocentes, e dinheiro nenhum do mundo pode ressarcir essas pessoas. O cálculo feito pela "New Scientist"é extremamente simplório, baseado apenas em um pequeno grupo de pessoas. A tragédia é bem maior do que isso, afetou um território imenso, prejudicou a vida de 2 milhões ou mais de pessoas, sendo que isso é pouco mencionado. Chernobyl ganhou fama internacional, provavelmente porque estava perto demais da Europa. Já o SNTS e as quase 500 bombas atômicas ou termonucleares passaram desapercebidas. Um silêncio que calou vozes, mas que nunca será esquecido.
Até a próxima, AssombradOs.
Criação/Tradução/Adaptação: Marco Faustino
Fontes:
http://io9.gizmodo.com/5988266/the-tragic-story-of-the-semipalatinsk-nuclear-test-site
http://large.stanford.edu/courses/2014/ph241/powell2/docs/vakulchuk.pdf
http://nuclearweaponarchive.org/Russia/Sovwpnprog.html
http://www.businessinsider.com/photos-of-secret-soviet-sites-where-radiation-was-tested-on-unsuspecting-russians-2014-9
http://www.dailymail.co.uk/sciencetech/article-4346408/Russia-covered-nuclear-disaster-worse-Chernobyl.html
http://www.edouphoto.com/index.php?/project/under-a-nuclear-cloud/
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https://link.springer.com/article/10.1007/s00411-009-0235-y
https://www.newscientist.com/article/2125202-exposed-soviet-cover-up-of-nuclear-fallout-worse-than-chernobyl/
https://www.researchgate.net/publication/11358033_Fallout_from_nuclear_tests_Dosimetry_in_Kazakhstan