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El Tapado

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O mês de maio de 1683 foi de uma grande agitação no México. A capital da colônia, de simples e pacífica, havia mudado repentinamente de situação, e a monótona quietude de outros dias deu lugar a uma espécie de movimento febril, uma animação extraordinária e uma comoção verdadeira em todas as classes da sociedade.

Era que os piratas haviam desembarcado na nova Veracruz, e os piratas eram inimigos terríveis para as colônias espanholas.

Os piratas eram inimigos terríveis das colônias - Imagem ilustrativa

A meados do século XVII, uma turbulência repentina abalou a tranquila posse que tinham os espanhóis das ilhas do mar das Antilhas e na costa da terra firme; o comércio foi interrompido, e as frotas que saíam da América rumo à Europa, carregadas de tesouros ou ricas mercadorias, precisavam ser escoltadas por navios de guerra, sob o risco de cair nas mãos dos piratas.

E mesmo custodiados com navios armados, essa prevenção foi inútil algumas vezes, porque os piratas atacavam e venciam almirantes espanhóis, com a mesma facilidade com que haviam vencido os governadores das cidades e das fortalezas.

Por essa razão, a população do México ficou em choque quando na sexta-feira, 21 de maio de 1683, às 3 horas da tarde, o Pirata Laurens de Graaf também conhecido como "Pirata Lorencillo", publicou um desacato que prevenia o Vice-Rei (Virrey Don Tomás de la Cerda) de que no término de duas horas, se apresentassem, baixando as armas, todos os homens que tivessem de quinze até sessenta anos de idade.

O Vice-Rei e a Real Audiência desprenderam então tanta energia e atividade, que no dia seguinte, no sábado dia 22, estavam já formadas as companhias de infantaria e cavalaria, e rumaram para Veracruz com os Ouvidores Dom Frutos Delgado y Dom Martín de Solís.

México.
No entanto, no meio do terrível alarme gerado na cidade por essas notícias, corria uma outra nova entre o povo, que não deixava de ser de grande interesse, principalmente para o Vice-Rei e para a Audiência. 

Essa outra notícia era que pouco antes da chegada dos piratas a Veracruz, quase ao mesmo tempo, havia desembarcado ali, Dom Antonio de Benavides, Marquês de San Vicente, Marechal de campo, Castelhano de Acapulco (Governador do Castelo de Acapulco), nomeado Visitador (Um cargo equivalente ao de Fiscal) do reino por Sua Majestade. 

O Marquês de San Vicente se dirigiu imediatamente para a cidade do México, e como nos povoados do seu caminho eram conhecidos os seus títulos e sua envergadura de Visitador, disputavam por sua presença em todas partes e o mimavam esplendidamente. 

A colônia, apesar de sua aparente submissão e fidelidade, aborrecia os seus reis e sempre os "criollos", como chamavam os espanhóis aos mexicanos, viam com uma espécie de prazer o aparecimento de um visitante que vinha fiscalizar os senhores, que em nome do rei, mandavam na Nova Espanha

Os Ouvidores e os Vice-Reis recebiam por sua vez a notícia da chegada de um Visitador como o anúncio de uma calamidade, e mal dissimulavam nos festejos de sua recepção, a ira e o despeito que ardia em seus corações. 

Já nos batalhões compostos por espanhóis, nativos e outros mais; os soldados haviam se filiado por castas como costumavam fazer naquele tempo, e nomearam capitães. Estavam preparados e prestes a confrontar a ameaça pirata. Mas quase ao mesmo tempo em que se soube da retirada dos piratas da Cidade do México, se espalhou a notícia de que por ordem da Real Audiência havia sido preso em Puebla o Visitador D. Antonio de Benavides. 

Que causas haviam movido à Real Audiência a tomar essa decisão? Ninguém sabia e isso causava um verdadeiro assombro em todos. A prisão de um Visitador era naqueles tempos um atentado grave, um fato tão escandaloso e de tão severa transcendência, que era equivalente hoje em dia, a um Golpe de Estado.

El Tapado - Por Vicente Riva Palacio.

Tanto haviam falado de Benavides, tão misteriosa havia sido sua conduta, e tão impenetráveis a missão que trazia e a causa de sua prisão... Que as pessoas começaram chamar ele de "El Tapado" (que significa "coberto" ou "oculto"), e esse apelido se popularizou tanto e com tanta rapidez, que na noite do dia 4 de junho, uma multidão de curiosos se dirigiu à Rua do Relógio, e entre todos eles não se ouvia falar de outra coisa senão do "El Tapado", que devia chegar naquela mesma noite. 

Apesar da claridade da lua, a multidão só pode ver a um homem envolto em uma grande capa preta, que ia montado em uma mula e no meio de um grupo de oficiais a cavalo. Esse homem era o El Tapado.

El Tapado - Imagem ilustrativa

Dom Antonio de Benavides* foi preso em um calabouço, em um lugar chamado Xico (pronuncia-se Ksíco), e no dia 10 de junho tomaram sua primeira declaração e ele foi levado à sala do crime** para que fosse julgado. 

Em vão tentaram obter dele uma resposta que desse alguma luz sobre os seus antecedentes, sobre sua missão, sobre o objetivo que o levou à Nova Espanha; os esforços dos ouvidores se chocaram contra a fria reserva daquele estranho e misterioso homem, a quem não intimidavam nem as ameaças de tortura nem as de morte, nem muito menos, amolecia diante de promessas ou ofertas.

*É possível que Dom Antonio de Benavides "El Tapado", fosse um mensageiro ou inspetor confidencial da rainha regente Maria Ana de Áustria, Rainha de Espanha, mas não teria conseguido estabelecer suas credenciais, ou estas não foram aceitas. NDT.

**Sala do Crime, Sala del Crimen no original, refere ao Tribunal daquele tempo e lugar. Dependia da Real Audiência e era em princípio, a encarregada de julgar os delinquentes. A Sala do Crime estava conformada por prefeitos e um promotor, geralmente todos idosos, sendo difícil que se mobilizassem a diversos lugares depois que ladrões, bandidos, bandoleiros e piratas, assolassem uma região.
[PDF para download] NDT.

Com uma serenidade inacreditável, com um sangue frio que espantava os próprios juízes, Dom Antonio de Benavides, El Tapado, respondia às perguntas, ou com ironia, ou com um sorriso de desprezo, ou então, com palavras duras que demonstravam que aquele homem tinha uma energia selvagem e uma vontade indomável.

Na sexta-feira, 11 de junho de 1683 o Vice-Rei desceu ao calabouço de Benavides e se trancou com ele. Os pajens e os cavaleiros que acompanhavam Sua Alteza ficaram na porta esperando o resultado daquela conversa. A curiosidade de todos aqueles homens era terrível, e teciam ali comentários dos mais absurdos chegando a fazer apostas a respeito do resultado que teria a visita do Vice-Rei ao El Tapado.

As disputas esquentavam e os ânimos se exaltavam facilmente na discussão, mas nada de concreto podia se dizer. Não se sabe. Mas aquela conversa devia ter afetado profundamente o Vice-Rei, porque sem falar uma só palavra aos que o esperavam, com o senho tenazmente franzido e com a testa úmida de suor, rumou para os seus aposentos atravessando o cárcere e os corredores do palácio, sem responder às cerimoniosas saudações dirigidas a ele dos que estavam em seu caminho.

Naqueles tempos desgraçados, a confissão era arrancada dos acusados por meio da força, e como os ouvidores nada haviam podido saber de Benavides, determinaram que ele fosse torturado.
A notícia do acontecimento chegou à Audiência Real, e os ouvidores, esperançosos de que dessa vez seriam mais afortunados em sua tentativa, determinaram praticar o quanto antes as diligências da tortura.

Benavides sofria o tormento com uma energia e presença de espírito que não se desmentia nem por um só instante, e novamente, nada souberam os ouvidores. A dor não arrancou de El Tapado nem a confissão mais insignificante.

E no entanto, horrível deve ter sido o sofrimento daquele homem, porque se a fortaleza de sua alma venceu à dor, seu corpo não pôde resistir a tão duro tratamento: nada confessou; mas no dia seguinte todo o México sabia que iam sacramentar o El Tapado que estava moribundo a consequência do martírio imposto pelo senhores da Sala do Crime.

A história do El Tapado oferece a cada momento, ocorrências que só servem para aumentar mais e mais o mistério que envolve sempre essa célebre figura.

Um ano se passou, e quase se esqueceram de Benavides, que restabelecido, seguia sendo julgado pela Audiência Real. Mas na segunda-feira, dia 10 de julho de 1684 anunciaram que El Tapado havia sido condenado a morte por formar aliança com piratas, e que já havia sido levado à Capela.

Como a execução de justiça era naqueles tempos um espetáculo público muito concorrido, todos começaram a se dispor para assistir a esta que, segundo as leis e a prática, devia ser verificada três dias depois, ou seja, na quarta-feira dia 14 de julho de 1684.

Efetivamente assim aconteceu; Benavides ficou na Capela aqueles três dias de agonia a espera da execução. A espera... o mais terrível dos castigos. E durante esse tempo, fez chamar a Castillo, o secretário do Vice-Rei, para fazer uma revelação: O que El Tapado disse a ele? Jamais se soube.

E é aqui que a coisa fica ainda mais estranha...

Amanheceu por fim o dia 14; a Praça de Armas e as ruas próximas se encheram de curiosos, as pessoas se apinhavam nas sacadas, para ver passar a comitiva de soldados e padres que escoltavam o condenado, com o peito coberto de escapulários, sem chapéu, vestido de preto e montado em uma mula.

Em cada esquina anunciavam o nome do condenado, seu crime e a sua condenação: Dom Antonio de Benavides - Crime por formar aliança com piratas - Morte na forca

O patíbulo.
O sol puro e brilhante no meio de um céu limpo e sereno, iluminou com seus ardentes raios uma multidão ansiosa por contemplar o suplício de um homem que nenhum mal havia feito e no qual, apenas de nome conheciam.

Assim chegaram até a forca que estava no centro da praça. Benavides foi baixado da mula e levado até o patíbulo, o executor passou a corda ao redor do seu pescoço, os padres redobraram suas fervorosas orações. "Que Jesus te acompanhe!" murmurou a multidão, e um instante depois, Dom Antonio de Benavides, Marquês de San Vicente, Visitador, Marechal de campo e Governador do Castelo de Acapulco, não era mais que um cadáver balançando na ponta da corda.

Depois disso, os padres se retiraram e os verdugos removeram o cadáver que, conforme a sentença, cortaram suas mãos e cabeça: Uma mão foi cravada no patíbulo da forca, a outra mão e a cabeça foram enviadas a Puebla.

O eclipse.

Nesse momento, quando na praça ressoavam as marteladas do verdugo que cravava a mão amputada do condenado no patíbulo, o sol que estava gradualmente empalidecendo, escureceu em um eclipse total. A multidão, impressionada com o espetáculo, sentiu um terror supersticioso ao ver que o sol escurecia como se fosse um sinal de Deus de que aquele homem era inocente, fugiu esbaforida em todas direções. Um momento depois a grande praça estava deserta.

Data de execução de Antonio Benavidez - "El Tapado" - na igreja de la Compañía em Puebla, México.



O mais impenetrável mistério permeia toda esta história. Quem era o "El Tapado"? Qual a razão da sua visita ao México? O que ele falou com o Vice-Rei? Ninguém soube, ninguém sabe. Talvez algum dia, o inesperado achado de algum registro antigo esquecido, no México ou na Espanha, lance luz sobre este sombrio episódio da história colonial mexicana.

Tradução/Adaptação Rusmea & Mateus Fornazari

Fontes:
Vicente Riva Palácio.
http://cdigital.dgb.uanl.mx/la/1080009034/1080009034_27.pdf

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