Por Marco Faustino
Quando se fala sobre o tema "bruxaria" ou "feitiçaria" muitos logo pensam em alguma coisa oculta, sombria e até mesmo macabra. Atualmente, acredito que não faltam motivos que levem as pessoas a pensarem dessa forma, basta olhar com atenção com que acontece em diversos países africanos onde mulheres e crianças são mortas ou torturadas das formas mais desumanas possíveis, simplesmente por mera ignorância ou intolerância cultural. Lembro que há dois anos, entre o setembro e outubro de 2015, escrevi duas postagens tentando retratar um pouco dessa situação, que acontece diariamente, e não somente na África. Uma das postagens foi sobre a moderna caça às bruxas e a superstição assassina na Índia, onde viúvas idosas vivem com medo de serem mortas como "bruxas", quando um vizinho adoece ou então o gado morre de uma maneira inesperada. Isso representa um paradoxo dos tempos modernos, visto que, se por um lado a Índia é uma das maiores democracias do mundo, e tem uma economia em rápida expansão, por outro, a maioria da população permanece pobre, e cidadãos índianos, mesmo aqueles que possuem um certo grau de instrução, frequentemente recorrem à superstição para curar doenças, encontrar o seu amor, compreender os acontecimentos ruins de suas vidas ou simplesmente evitar o azar. Entretanto, na Índia, uma pessoa acusada de ser uma "dayan", ou seja, uma "bruxa", pode ser torturada, estuprada, agredida até a morte ou queimada viva. As vítimas muitas vezes são mulheres solteiras mais velhas, geralmente viúvas, mas também podem ser homens e inclusive crianças. Isso mesmo que você leu, crianças. Em alguns casos as mulheres são acusadas simplesmente devido a sua aparência, ou seja, por serem consideradas "feias" (leia mais: A Moderna Caça às Bruxas e a Superstição Assassina na Índia: As Faces do Medo).
Uma outra postagem foi sobre a dramática situação de milhares de crianças acusadas de bruxaria na República Democrática do Congo. As crianças que não conseguem ser "salvas", principalmente por padres católicos, ainda são abandonadas por suas famílias em meio a sujeira e violência da cidade de Kinshasa, a capital do país, e são temidas até mesmo pelos demais cidadãos, que as ignoram ou até mesmo mudam de direção na rua para evitar o contato com elas. Estima-se que até 50.000 crianças já foram acusadas de bruxaria e deixadas para se defenderem sozinhas nas favelas espalhadas pelo país, onde atualmente vivem 20 milhões de pessoas. Algumas delas são recém-nascidas ou crianças desnorteadas, perplexas, assustadas, e que foram jogadas em um mundo de pesadelo, onde a sobrevivência é dada pelo crime, pela prostituição e pela violência (leia mais: A Dramática Situação de Milhares de Crianças Acusadas de Bruxaria na República Democrática do Congo). Esses assuntos são tão densos, que até hoje não consegui escrever sobre a situação das crianças albinas na África, visto que tenho plena consciência que será um texto muito carregado, mas que ainda pretendo futuramente trazer esse assunto ao conhecimento de vocês.
De qualquer forma, o universo da "bruxaria" ou da "feitiçaria" nem sempre é repleto de dor ou sofrimento, mas também de situações um tanto quanto inusitadas. Esse é o caso de uma pequena e modesta casa na cidade de Hólmavík, em Westfjords (Fiordes Ocidentais), na Islândia, onde existe um museu, que possui exposições completamente macabras da feitiçaria do século XVII na região. Existe uma calça que muitos acreditam até hoje, que seja feita de pele humana, e que dizem dar riqueza ilimitada para quem a veste; inscrições simbólicas e mágicas chamadas de "staves", que muitos acreditam que ofereçam poderes que vão desde a capacidade de ver fantasmas ou fazer alguém se apaixonar por você; e estranhas criaturas de duas cabeças que nascem para roubar o leite de vacas ou cabras. Embora toda essa estranheza arcana pudesse ser vista como sendo tão somente uma coleção extravagante de esquisitices, tanto para o curador do Museu Islandês de Feitiçaria e Bruxaria, como para a cidade de Hólmavík, as exposições atuam como importantes recordações de época sombria na história local. Além disso, elas também são ótimas em trazer turistas e dinheiro para a cidade! Vamos saber mais sobre esse assunto?
Um Pouco Sobre a Cidade de Hólmavík, na Islândia
A cidade de Hólmavík é a maior cidade da região de Strandir, uma área com uma incrível e trágica história de bruxaria, caça às bruxas e feitiçaria. Os habitantes que moram na zona rural nos arredores de Hólmavík vivem principalmente da criação de ovinos, enquanto a atividade econômica do restante da cidade gira em torno da pesca e do setor de serviços.
Imagem do Google Maps mostrando a distância entre Hólmavík e Reykjavík, a capital da Islândia, ou seja, cerca de 225 km ou pouco mais de 2h40 de carro. |
Visão aérea da cidade de Hólmavík, na Islândia |
Foto mostrando uma parte do centro comercial da cidade de Hólmavík, na Islândia |
Próximo a Hólmavík também existe o "Sheep Farming Museum" (algo como "Museu da Criação de Ovinos", em português), onde se encontra uma divertida exposição dedicada a criação de ovelhas na Islândia.
Próximo a Hólmavík também existe o "Sheep Farming Museum" (algo como "Museu da Criação de Ovinos", em português), onde se encontra uma divertida exposição dedicada a criação de ovelhas na Islândia |
A História do Museu Islandês de Feitiçaria e Bruxaria
Tudo começou em 1996, quando o Comitê Distrital de Strandasýsla deu início as discussões de como eles poderiam atrair mais turistas para essa remota região da Islândia. Uma das ideias propostas foi criar uma exposição, que se concentrasse nas verdadeiras caçadas às bruxas que ocorreram no país, no século XVII. A primeira parte da vasta exposição, em seu próprio museu (justamente o Museu Islandês de Feitiçaria e Bruxaria), foi inaugurada em uma noite de verão do ano 2000.
Foto mostrando a fachada do Museu Islandês de Feitiçaria e Bruxaria, em Hólmavík, na Islândia |
A primeira parte da vasta exposição, em seu próprio museu (justamente o Museu Islandês de Feitiçaria e Bruxaria, que aparece na foto acima), foi inaugurada em uma noite de verão do ano 2000 |
A segunda parte da exposição, chamada Kotbýli kuklarans, abriu em Klúka, próximo de Bjarnarfjörður, em 2005, sendo denominada como a "Casa de Campo do Feiticeiro" |
A exposição é dedicada aos pobres moradores daquela época, focando na "magia que eles praticavam" para tentar tornar suas vidas um pouco mais suportáveis |
Um dos principais complicativos era que, ao focar em rituais e na bruxaria praticada por feiticeiros islandeses do século XVII, resultava em encontrar uma maneira de criar uma exposição de artefatos ocultistas, nos quais não existiam mais exemplares. Segundo Siggi, teria levado cerca de dois anos de pesquisas em grimórios, livros antigos de sacerdotes, entre outras publicações, para então reunir uma coletânea dos mais estranhos e bizarros trabalhos que poderiam encontrar.
A iniciativa, no entanto, encontrou resistência de alguns opositores, cristãos conservadores. Porém, quando o museu foi finalmente inaugurado em Hólmavík, os mesmos perceberam que aquilo não era nenhuma blasfêmia ou insulto a memória daqueles que morreram, em um triste período na história da Islândia.
O principal fato que tornou a caça às bruxas na Islândia particularmente única, é que a maioria dos acusados de bruxaria eram homens. De um total aproximado de 120 julgamentos, somente 10 envolviam mulheres. Desse total, 21 pessoas foram queimadas como bruxas, sendo que apenas 1 era mulher. Vale a pena destacar também, que a maioria das pessoas acusadas de bruxaria eram justamente as mais pobres.
De acordo com Siggi, muitas das práticas mágicas folclóricas da Islândia datam de séculos atrás, com raízes em rituais pagãos ainda mais antigos. Por volta de 1.000 d.C, a população da Islândia era bem pequena. Além dos colonos nórdicos que trouxeram suas crenças pagãs ao país com eles, havia também um número de colonos cristãos vindos da Irlanda, da Escócia e de outros lugares. Para evitar uma guerra civil religiosa, o parlamento do país decretou que o Cristianismo seria a religião oficial, mas que os cidadãos seriam autorizados a praticar suas crenças nórdicas de forma particular e por conta própria. Através dos séculos, a crença no que chamamos de magia e feitiçaria persistiu. Os rituais arcanos e as "pessoas ocultas" (ou "elfos") se tornaram uma parte importante do folclore e da tradição local, infiltrando-se na simbologia e nos nomes de territórios por todo o país. Algumas delas até se misturavam com as crenças cristãs impostas, criando uma espécie de religião híbrida.
Esse impasse durou até século XVII, quando a Igreja Católica introduziu o conceito de "magia" tal como conhecemos hoje, com o objetivo de marginalizar as práticas pagãs. O que antes era o reino da crença tradicional e do folclore histórico, passou a ser a obra de feiticeiros e bruxas. Assim sendo, a Igreja arrumou uma espécie de "desculpa" para poder massacrar o paganismo na Islândia. As crenças do velho mundo foram empurradas da luz do dia, mas nunca foram completamente extinguidas.
"É importante visitar Klúka, após visitar o Museu Islandês de Feitiçaria e Bruxaria. Essa parte do museu permite que os visitantes vivenciam as duras condições que muitos islandeses viviam na época", disse Siggi, curador do museu, em uma entrevista para a Iceland Magazine, em 2014.
A "Casa de Campo do Feiticeiro", em Klúka, durante o período de inverno |
O Curador do Museu: Um Homem Chamado Sigurður Atlason, Mais Conhecido como "Siggi"
Siggi, o principal homem por trás do museu, nasceu e cresceu na populosa Reykjavík, a capital de Islândia, e acabou se mudando para Hólmavík durante a adolescência. O primeiro contato com a cidade aconteceu durante uma visita ao seu irmão mais velho, que estava trabalhando durante o verão na cidade.
Ele disse que seu interesse pelo folclore local veio das histórias que sua avó lhe contava quando era criança. Quando ficou mais velho, sempre que podia ele lia as coleções de contos e lendas folclóricas islandesas de Jón Árnason, um famoso escritor, bibliotecário e diretor de museu islandês, que fez a primeira coleção de contos folclóricos do país. Seus contos favoritos eram sobre trolls e pessoas ocultas (os "elfos").
A Iceland Magazine destacou que o Museu Islandês de Feitiçaria e Bruxaria combinava uma série de fatos históricos interessantes sobre os eventos sombrios da caça às bruxas da Islândia, juntamente com o folclore local ligado ao "sobrenatural". O museu foi classificado como um dos dez melhores museus na Islândia em 2014 por usuários do site TripAdvisor, um dos maiores sites de viagens do mundo. Aliás, era a segunda vez que o museu recebia tal classificação. Porém, estar entre os melhores não significava vantagens financeiras.
Foto mostrando uma parte do Museu Islandês de Feitiçaria e Bruxaria |
Umm série de documentos e textos antigos que estão em exibição no Museu Islandês de Feitiçaria e Bruxaria |
Outros documentos e textos antigos em exibição no Museu Islandês de Feitiçaria e Bruxaria |
As Peculiares Exposições Relacionadas ao Mundo "Sobrenatural"
O objeto mais popular do museu é a macabra "nábrækur", também conhecida como "necropants" (algo que poderia ser traduzido como "necrocalça" ou "calça do morto", em português). Segundo diversos contos folclóricos islandeses antigos, essas calças mágicas seriam feitas com a pele, da cintura para baixo, de um homem que tenha morrido de causas naturais (tomando o cuidado para não deixar buracos ou rasgos).
Ainda é mencionado, que se uma pessoa vestí-la e colocar uma moeda na região escrotal da calça, ela terá riqueza infinita, ou seja, a região escrotal, por assim dizer, vai se "enchendo magicamente de moedas" ao longo do tempo. Ah, quase ia me esquecendo, é necessário que esse homem morto seja amigo do feiticeiro que realizar esse processo, e que um pacto seja selado anteriormente a sua morte, é claro.
O renomado cenógrafo Árni Páll Jóhannsson criou a famosa "necrocalça", assim como outras relíquias do museu. A calça acabou ganhando destaque ao redor do mundo ao ser apresentada pelo comediante britânico Stephen Fry, em seu programa na BBC, chamado QI.
O objeto mais popular do museu é a macabra "nábrækur", também conhecida como "necropants" (algo que poderia ser traduzido como "necrocalça" ou "calça do morto", em português) |
Entretanto, devido a natureza da calça, nem todos são fãs da mesma. Na verdade, alguns visitantes ficam com nojo da necrocalça. De qualquer forma, ao menos de acordo com Siggi, ninguém na história teria tentado criar uma necrocalça de verdade. Isso seria apenas parte do folclore local.
De qualquer forma, ao menos de acordo com Siggi, ninguém na história teria tentado criar uma necrocalça de verdade. Isso seria apenas parte do folclore local. |
Vale a pena mencionar que que no artigo recentemente publicado pelo Atlas Obscura também foi ressaltado que a necrocalça, assim como os demais objetos são reproduções criadas por artistas plásticos a partir de descrições históricas, ou seja, podem ficar calmos, visto que Siggi não está tentando esconder a verdade sobre a mesma. Pelo menos é o que tudo indica.
Um outro destaque do museu é o esqueleto de um morto-vivo que, eclode do chão de concreto. O mesmo faz referência a um ritual para criar um "zumbi vingativo". Sim, isso mesmo que você leu! De acordo com Siggi, para acordar uma pessoa do mundo dos mortos seria necessário proferir uma certa poesia, e realizar algumas invocações sobre o túmulo. Além disso, seria necessário dar uma volta ao redor da capela da cemitério e cuspir no túmulo da pessoa morte, algo que pode ser bem desagradável.
Um outro destaque do museu é o esqueleto de um morto-vivo que, eclode do chão de concreto. O mesmo faz referência a um ritual para criar um "zumbi vingativo". |
A segunda parte do processo é ainda pior, visto que além de lutar contra o morto-vivo, assim que a mesmo se levantar, também seria necessário colocar a cabeça na frente dele e "lamber" todo o líquido que sair do seu nariz e da boca. Sim, seria necessário fazer isso usando a própria língua, pois seria dessa forma que você dominaria o morto-vivo. Depois disso, você pode dizer ao mesmo tudo o que você quiser que ele faça por você. Uma vez que você o envie até uma pessoa, que você não gosta ou seja seu inimigo, o zumbi não apenas seguirá essa pessoa até o fim de sua vida, mas a seguirá por sete gerações!
Uma vez que você o envie até uma pessoa, que você não gosta ou seja seu inimigo, o zumbi não apenas seguirá essa pessoa até o fim de sua vida, mas a seguirá por sete gerações! |
O "objeto macabro" deveria ser mantido entre os seios de uma mulher, e durante três domingos ela deveria cuspir o vinho santificado da comunhão sobre o mesmo, até que algo dessa mistura começasse a criar vida. Em seguida, seria necessário amamentar a criatura na parte interna da coxa, o que resultaria no aparecimento de "verrugas", como se fossem "mamilos", até que ele ficasse maior.
Em seguida, seria necessário amamentar a criatura na parte interna da coxa, o que resultaria no aparecimento de "verrugas", como se fossem "mamilos", até que ele ficasse maior |
Foto mostrando o que seriam as etapas de crescimento de um "tilberi" |
Após crescer, o "tilberi" poderia ser enviado pela mulher que o criou para sugar o leite das vacas e das cabras de outras pessoas |
Para se tornar invísível, por exemplo, seria necessário desenhar um "stave" (símbolo) chamado Hulinhjálmur, em um pedaço de lignito (um tipo de rocha), com uma "tinta especial" |
Um "stave" (símbolo) de proteção contra a maldade enviada por pessoas ruins |
Hoje em dia, o Museu Islandês de Feitiçaria e Bruxaria atrai regularmente centenas de pessoas, que vem admirar os mais estranhos objetos e histórias de rituais proferidas pro Siggi, mas para o curador do museu, o mesmo é uma espécie de lembrete sobre as duras lições da caça às bruxas. Aliás, atualmente ele costuma comparar o que aconteceu na Islândia, no século XVII, com o que vem acontecendo em relação a chamada "islamofobia", ou seja, ao sentimento de repugnância ou de repúdio em relação aos muçulmanos e ao Islamismo em geral. Segundo Siggi, isso é algo muito triste, porque isso já foi visto inúmeras vezes na história, e invariavelmente algo assim sempre se repete.
Enfim, ao consultarmos o site oficial do Museu Islandês de Feitiçaria e Bruxaria podemos encontrar informações muito úteis para todos aqueles que desejam visitá-lo. O museu abre diariamente das 11h às 15h, e novamente das 18h às 19h, sendo que nesse período de inverno no Hemisfério Norte, o mesmo ficará aberto nesse horário até o dia 1º de maio. O ingresso básico custa cerca de 950 coroas islandesas (cerca de R$ 25 pela cotação atual). Grupos acima de 10 pessoas ou estudantes pagam o equivalente a R$ 22, idosos e pessoas com deficiência pagam R$ 20, sendo que crianças com 15 anos ou menos não pagam nada para visitá-lo.
O museu abre diariamente das 11h às 15h, e novamente das 18h às 19h, sendo que nesse período de inverno no Hemisfério Norte, o mesmo ficará aberto nesse horário até o dia 1º de maio |
Caso você visite a Islândia, e dê uma passada por lá, mande um abraço ao Siggi por nós!
Até a próxima, AssombradOs!
Criação/Tradução/Adaptação: Marco Faustino
Fontes:
http://factday.com/2012/09/03/necropants-the-icelandic-pants-of-the-dead/
http://iceland.for91days.com/holmavik-and-the-museum-of-sorcery-and-witchcraft/
http://icelandmag.visir.is/article/macabre-necropants-made-dead-mans-skin-display-holmavik
http://unusualplaces.org/dont-miss-the-museum-of-icelandic-sorcery-and-witchcraft/
http://www.atlasobscura.com/articles/iceland-witchcraft-museum-sorcery-interview
http://www.atlasobscura.com/articles/licking-the-revenge-zombie-the-history-of-icelandic-sorcery
http://www.atlasobscura.com/articles/objects-of-intrigue-necropants
http://www.blumhouse.com/2016/05/09/iceland-has-its-very-own-witch-museum-and-its-terrifying/
http://www.galdrasyning.is/
http://www.westfjords.is/en/moya/toy/index/town/holmavik
http://www.westfjords.is/en/what-to-see-and-do/services/the-icelandic-sorcery-and-witchcraft-museum